Do amor

 

 

 

 

“E nós conhecemos, e cremos no amor que Deus nos tem. Deus é amor; e quem está em amor está em Deus, e Deus nele” (1 João 4:16)

 

A teologia joanina é bastante enfática quando identifica a essência divina, o íntimo do Deus-Pai revelado nas Escrituras, com o princípio do Amor: “Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor” (1 João 4:8).

O Deus cristão não está preferencialmente identificado – do ponto de vista da sua essência – como Justiça, por exemplo, ao contrário do Deus Iavé, do Antigo Israel, ou como Verdade, ao contrário da proclamação de Jesus de Nazaré: “Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim” (João 14:6).

A ênfase do amor como essência divina seria revolucionária à época, pois quanto à descoberta da verdade já os gnósticos a procuravam e supervalorizavam, embora enquanto conhecimento místico alcançado. E quanto à justiça, estaria entranhada na cultura judaica, através da lei de Moisés. O amor, sim, era um conceito inovador – um estágio avançado da revelação divina, que é progressiva, como se compreende – nas culturas do mundo antigo, invariavelmente estribadas na violência e não na misericórdia, na lei do mais forte e não na compaixão, e no princípio de Talião.

Se virmos com atenção, a autoapresentação do Cristo comportava já em si mesma todas estas vertentes. Quando declarou ser o Caminho estava a falar de justiça: “Guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome” (Salmo 23:3b). Isto é, pelas veredas da vontade divina, que é a verdadeira justiça de Deus.

Quando o Mestre afirmava ser a Verdade, estava a assumir ser a perfeita revelação do Pai: “O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas” (Hebreus 1:3). Mas também a segurança da imutabilidade: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação” (Tiago 1:17). Portanto, uma verdade eterna, que não muda.

Todavia, quando se afirma como Vida, no fundo fala de Amor. A Criação procedeu de um acto de amor: “Porque desde a antiguidade não se ouviu, nem com ouvidos se percebeu, nem com os olhos se viu um Deus além de ti que trabalha para aquele que nele espera” (Isaías 64:4), “Nós o amamos a ele porque ele nos amou primeiro” (1 João 4:19), e a vida humana normalmente é gerada da mesma forma, como fruto do amor de um homem e uma mulher.

Mas o princípio do amor levantava questões de difícil resolução. Era muito mais fácil uma pessoa guiar-se pela verdade ou pela justiça, do que pelo amor. Este era muito mais desafiador porque expõe a pessoa face ao outro, entregando voluntariamente ao outro a capacidade e a margem de manobra para o rejeitar a si mesmo. Pode-se dizer então que praticar o amor de Deus exige coragem.

 

O amor como dom

O amor de Deus não se vende nem se compra. É uma dádiva do céu, um dom divino. Não se encontra nas páginas dum código de justiça nem na descoberta duma verdade, por mais profunda que seja. Transcende a lei e o conhecimento. Funciona noutro plano.

O amor divino, enquanto dom, nunca é outorgado a um só indivíduo, para seu exclusivo benefício ou usufruto. Com a concessão do dom Deus pretende provocar uma reacção em cadeia, semelhante ao princípio da fusão nuclear, descoberta pelo homem no século passado mas inscrita no sol e nas grandes estrelas desde a Criação. O princípio da bomba atómica é justamente a reacção em cadeia de fusão nuclear. Cada acção vai provocando a próxima acção e assim sucessivamente.

A outorga do dom do amor pretende provocar este tipo reacção. Libertar amor gera mais amor. Uma pessoa que se sente amada tende a amar os que estão à sua volta.

O exercício do amor como mandamento

“E a esperança não traz confusão, porquanto o amor de Deus está derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Romanos 5:5).

Jesus mandou aos seus discípulos que amassem o próximo. Não foi (nem é) um conselho, mas uma ordem. Só por aqui se pode comprovar que o “amor de Deus” (é desse tipo de amor que falamos) não é um sentimento, qualquer coisa volátil, flutuante, intermitente, nem tão pouco algo volitivo (dependente da vontade de cada um no momento). É um imperativo.

O amor-mandamento não se inscreve numa economia de trocas, não está dependente da atitude do outro ou da sua receptividade ou resposta à nossa abordagem.

Não está limitado pelo tipo de relações interpessoais que se desenvolvam com a pessoa em causa, por questões de empatia, simpatia ou identificação com o outro.

O amor-mandamento também não está condicionado aos méritos pessoais ou merecimento do outro.

Não tem que ver com o nosso estado psico-emocional pontual, de maior ou menor fragilidade, equilíbrio interno ou harmonia com o mundo envolvente.

Simplesmente, tem que ser. E, como diz o povo, o que tem que ser tem muita força. Mas porque razão tem que ser? É simples. O cristão é apenas um canal do amor divino derramado no seu coração. A recusa em amar o próximo, em todas as circunstâncias, não é mais do que a recusa em ser um instrumento nas mãos de Deus. Não se espera dum canal que obstrua o seu caudal, mas que o escoe. Não somos torneiras mas canais.

Se optarmos por obstruir este canal que somos, o caudal do amor cessa e o canal fica seco, ou seja, reduzido à morte espiritual. Portanto, a boa saúde e, em última análise, a vida espiritual do discípulo depende da sua capacidade de ser um canal, fiel na transmissão do amor divino para os outros, através da sua pessoa.

Quando se ouve um discípulo dizer que não é capaz de amar o próximo, significa que não está disponível para ser um canal do amor de Deus.

Assim, do ponto de vista teológico podemos dizer que o amor não é um sentimento, uma emoção ou produto da vontade humana, mas sim um produto do Espírito Santo que habita no crente. Segundo a Carta aos Romanos (5:5) o amor de Deus “está derramado” no íntimo do cristão, por operação do Espírito de Deus.

Mas está lá a fazer o quê? Para que efeito? Em parte para benefício e usufruto próprios, é certo. A consciência e percepção do amor de Deus (que Deus nos tem) é essencial para a “respiração” da fé pessoal do crente, muito em especial face a circunstâncias e vivências adversas. Mas não é tudo. Nem talvez o principal. O amor de Deus está lá para ser encaminhado para o irmão e o próximo, pois é essa a essência do Evangelho.

O cristão comprometido com Cristo e sua Igreja é um agente divino na terra, um discípulo, uma testemunha (marturia), um canal de bênção para os outros. O projecto de vida que Iavé reservou a Abraão foi, em última análise, que o patriarca se constituísse bênção para as nações: “E far-te-ei uma grande nação, e abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e tu serás uma bênção” (Gênesis 12:2). Espera-se que os cristãos, como descendência espiritual do patriarca aliançado com Deus, retomem o estabelecimento de tal propósito – ser uma bênção na vida dos outros.

O amor e a última ceia

Esta partilha do amor de Deus pode comparar-se, de certo modo, ao partir do pão na última ceia de Cristo. Esta ceia comunitária fala de partilha do dom que está presente. O pão, depois de abençoado, torna-se bênção divina para os que o tomarem. Neste episódio há três momentos importantes a reter: primeiro o Mestre tomou o pão.

O pão, nas mãos santas de Jesus já não é só pão, um mero alimento confecionado a partir de cereais. Agora é também um instrumento divino, tal como a ferramenta na mão do carpinteiro.

Depois abençoou-o, ou seja, tornou-o dom de Deus, revestido de um simbolismo único, mas também de uma eficácia distinta (para que não haja “fracos”, “doentes” e “adormecidos” na congregação”, v. 30).

Finalmente partiu-o e distribui-o aos presentes. Ou seja, o dom de Deus não pode deixar de ser partilhado com todos os presentes, isto é, todos aqueles que se apresentarem à mesa. Daí a exortação enfática “esperai uns pelos outros” (v33b).

Na cultura da fé cristã tudo fala de partilha, de bênção, de propósito e de compromisso com Deus e o semelhante.

Uma questão de natureza

O exercício desse amor-mandamento, projectado nas nossas relações interpessoais, é denominado pelo apóstolo Paulo como “fruto do Espírito”, dentre outras evidências da presença e influência divinas em nós, através de Jesus Cristo, nosso Mediador: “Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança.” (Gálatas 5:22)

Mais. Jesus ensinou que seria pelos frutos que poderíamos conhecer a natureza do homem, da mesma forma como é pelo fruto que se identifica uma árvore: “Por seus frutos os conhecereis. Porventura colhem-se uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos?” (Mateus 7:16)

Pode alguém dizer que, se o amor é mandamento, então onde está a sua espontaneidade? E, por consequência, o seu valor? É aqui que entra a questão da natureza.

O homem “nascido da água e do espírito” (João 3:5) – condição sine qua non para entrar no reino de Deus – sofre uma mudança substantiva na sua natureza espiritual, na essência do seu ser. A teologia paulina da salvação afirma que o tal foi “vivificado com Cristo” (Efésios 2:5), pois antes estaria “morto em ofensas e pecados” (Efésios 2:1). A hamartologia mostra que a vida de Deus habita agora no convertido, através do Espírito Santo, e que as evidências da sua vida só podem ser as do Espírito que em si habita.

Apesar disso S. Paulo defende que persiste no crente uma luta latente e constante entre a “carne“ e o “espírito”, que pode fazer tropeçar e cair de forma recorrente o convertido, mas a marca distintiva da sua natureza será sempre a da “nova criatura”: “Porque em Cristo Jesus nem a circuncisão, nem a incircuncisão tem virtude alguma, mas sim o ser uma nova criatura” (Gálatas 6:15). 

O amor como entrega

O amor, portanto, é a marca distintiva mais decisiva na vida cristã. O apóstolo disse-o à comunidade cristã de Corinto de forma eloquente, na sua célebre definição do amor agape (I Coríntios 13), onde traça a natureza do amor de Deus como sendo essencialmente uma motivação e atitude de entrega ao outro sem condições.

Brunner (1889-1966), grande teólogo suíço do século XX, caracterizou a comunhão dos santos observada durante a igreja do primeiro século, como “um dar e receber recíproco”, retomando a fórmula de Lutero. (1)

Como não podia deixar de ser vamos encontrar o exemplo maior do dar e da entrega na vida de Jesus Cristo, nosso modelo e exemplo, “o qual se deu a si mesmo por nós” (Tito 2:14a), e, por amor, “se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Efésios 5:2).  

O amor como marca distintiva

Jesus deixou bem claro qual era o selo do discipulado perante o mundo (oikoumene): “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (João 13:35). Assim, o amor divino é o emblema, a marca, o distintivo do cristão comprometido com Cristo. Não há outro. Nem a doutrina, nem a tradição, nem a história, nem a confissão/denominação, nem a estrutura ou organização eclesial.

 

José Brissos-Lino

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  • Brunner, E. (2000). O Equívoco da Igreja. São Paulo: ed. Novo Século, p 68.

 

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